quarta-feira, 14 de outubro de 2015

Reparação - Ian McEwan


No Atonement for Novelists

"Atonement" foi considerado um dos grandes romances dos últimos anos. Ambientado na Inglaterra da década de 1940, no início da Segunda Guerra Mundial, o romance de 2001 do inglês Ian McEwan narra a trajetória de Briony Tallis em busca de reparação pelo crime que cometeu na adolescência.



Tudo tem início numa noite de verão de 1935, antes de um grande jantar em família. Contando treze anos, a jovem e imaginativa Briony acidentalmente presencia, na biblioteca de casa, o despertar da paixão entre a irmã mais velha, Cecília, e seu amigo de infância, Robbie Turner. Interpretando aquilo que ainda não compreende, Briony acredita que Robbie estivesse atacando Cecília e passa a ver o rapaz como um maníaco que precisa ser detido. Ainda na mesma noite, Briony flagra, na escuridão da propriedade dos Tallis, sua prima Lola ser violentada e, apesar de não ter visto o rosto do agressor, acusa Robbie com férrea obstinação e denuncia-o às autoridades. Este é então algemado e levado pela polícia.

Eis o motivo central da obra, eis o pecado que Briony passará o resto da vida tentando expiar: deixando-se levar por sua imaginação e um imaturo senso de justiça, a caçula dos Tallis manda um homem inocente para a prisão, transformando para sempre a sua vida e a de toda a família.

Após o desfecho da fatídica noite de 1935, há uma cisão na narrativa e o autor nos transporta para o conturbado cenário bélico de 1940. A partir da perspectiva de Robbie, acompanhamos os destinos dos dois amantes que se viram prematuramente separados pela injusta acusação da irmã de Cecília e, mais tarde, pela Segunda Guerra Mundial. Tematicamente, o romance aqui se abre, pois, à parte da tragédia familiar, McEwan aborda também a tragédia histórica: a brutalidade do campo de batalha, a iminência da morte, bem como os reveses sofridos pelas forças inglesas na França, no início da guerra.




Todavia, o relato de Robbie apenas não basta. Uma vez que toda história tem dois lados, o autor em seguida nos reapresenta o ano de 1940, porém desta vez pelos olhos de Briony, já com dezoito anos. Esta sofre terrivelmente pelo crime que cometera no passado e, consumida pela culpa, vive cada dia de sua via tentando repará-lo. Sacrifica inclusive seu futuro acadêmico – a vida confortável de intelectual em Cambridge – para trabalhar como enfermeira em Londres. Sua escolha por um trabalho braçal, absolutamente desintelectualizado, sob o jugo de uma rotina dura e extenuante, evidenciam sua ânsia por expiar seu crime. Briony procura às cegas uma forma concreta de ser útil à sociedade, de pagar com seu suor pelo dano que causou.

A narrativa de Briony ilustra de maneira exemplar o talento do autor. Confrontados com seu remorso e a saudade da irmã que a renegou, é quase impossível não nos solidarizarmos com ela. Seu relato obriga-nos a ver o outro lado da história – o lado da acusadora que, depois, tornou-se acusada; obriga-nos, se não a perdoá-la, ao menos a entendê-la. Não nos é oferecido o caminho mais fácil, isto é, o de demonizá-la e outorgar-lhe a condição inafiançável de antagonista. Absolutos são sempre rasos e, em se tratando de literatura, pouco interessantes. Ao permitir que vejamos o mundo pelos seus olhos, McEwan a humaniza, aproxima-a de nós, de nossos próprios erros e arrependimentos. Ao fim e ao cabo, sofremos não só por Robbie e Cecília, mas também por Briony e por tudo que ela perdeu.

O prestígio junto ao público e os arroubos da crítica que o romance angariou à época de sua publicação não foram infundados: calcado sobre uma linguagem refinada, que beira o lirismo sem dar margem para sentimentalismos, o romance de Ian McEwan é simplesmente arrebatador. Sua temática nos remete inevitavelmente ao célebre romance de Dostoiévski “Crime e Castigo”, na medida em que revisita a problemática “transgressão-redenção”, porém sob um contexto histórico e perspectiva diferentes. A luta inglória de Briony Tallis por conciliar-se com seu passado é uma verdadeira pérola da literatura contemporânea e merecedora do mais alto apreço.

Filipe Kepler, 12/07/2011 (lido em inglês) 

quarta-feira, 9 de setembro de 2015

O Nome da Rosa - Umberto Eco

Uma vida cor de Rosa

            A vida de um escritor não é fácil. Há quem pense que escrever livros é uma tarefa que custa algum trabalho e algum esforço, porém que traz muitos frutos – leia-se dinheiro. Isso seria por causa das obras modernas que estamos acostumados a ouvir falar por aí e a ver sempre dispostas nas prateleiras das melhores livrarias. Basta uma boa olhada nessas mesmas livrarias para percebermos que o número de escritores iniciantes vem crescendo a cada ano. Também pudera, ainda que as chances de sucesso sejam ínfimas, quem não gostaria de ter o nome imortalizado numa capa de livro ou – se a sorte ajudar – popularizado por artigos de jornal e quem sabe até uma pequena divulgação na tela da TV?

            O que poucos sabem é que um livro custa muito mais tempo de pesquisa do que de escrita. Um livro bom, claro. Livros de qualidade, livros com enredos e personagens que vão ficar na sua memória mesmo anos depois de lidos, livros que mereçam ser chamados de grande literatura, imortais: esses são a meta raramente atingida por homens e mulheres que se empenham em demonstrar através de papel e tinta um universo imenso e minúsculo ao mesmo tempo, um microcosmo do tamanho do ser humano.

        É o caso de O Nome da Rosa, romance de estréia de Umberto Eco, que tinha quarenta e oito anos de idade quando o publicou.



            O Nome da Rosa conta a história de dois religiosos – um frei franciscano de origem britânica e um noviço beneditino de origem austríaca –, que um pouco antes do inverno de 1327 chegam a uma abadia franciscana nos Apeninos setentrionais italianos. A abadia é famosa por sua extensa biblioteca, recheada de importantes e raras obras, que porém possui estritas normas de acesso. O frei, Guilherme de Baskerville, e o noviço, Adso de Melk, precisam organizar uma reunião entre os delegados do papa João XXII e os líderes da ordem franciscana, onde se realizará uma discussão sobre a suposta heresia da pobreza apostólica, uma doutrina promovida por uma ramificação dos franciscanos, os ditos espirituais. A tarefa já complicada fica ameaçada por uma série de mortes dentro dos muros da abadia que os monges supersticiosos – ouvindo as instâncias de um velho monge e ex-bibliotecário chamado Jorge de Burgos – creem ser iguais a algumas passagens do livro do apocalipse.

      Guilherme e Adso, ignorando em muitos momentos as normas da abadia e principalmente da biblioteca, procuram solucionar o mistério dos assassinatos e acabam descobrindo que tudo parece girar em torno da existência de um livro, obra esta que parece estar matando aqueles que o possuem.

            A narrativa é permeada pelos mais diversos temas e listá-los aqui só deixaria mais confuso o que já é por demais complicado. Basta dizer, resumidamente, que Guilherme de Baskerville encarna ambos Guilherme (William) de Ockham, o criador da “navalha de Ockham”, e o personagem mais famoso de Arthur Conan Doyle, Sherlock Holmes (Baskerville, como em O Cão dos Baskerville); Adso de Melk, seu fiel discípulo, encarna o Watson de Sherlock Holmes enquanto o Melk de seu nome serve para lembrar o leitor da abadia de Melk, famosa por sua biblioteca; o velho monge Jorge de Burgos é uma homenagem do autor a Jorge Luís Borges, que muito lhe influenciou na carreira, e que devotou sua vida aos livros e ficou cego no fim da vida, também incorpora a devoção religiosa, contrapondo-se a Guilherme, que vem representar a metodologia cartesiana – ainda que pré-Descartes – e o raciocínio lógico; temos também naquele tempo o tema da severidade religiosa versus a graça, o riso (teria Jesus rido alguma vez em sua vida?); a posse e a riqueza versus o desprendimento material (Jesus era proprietário de alguma coisa? E os apóstolos? Possuíam algo?); a pureza do espírito contra as máculas do corpo, especificamente, a vida monástica e o celibato contra o prazer carnal (afinal, quem é a tal da Rosa do título do livro?). E mais. Muitos mais.

            Descrevendo uma trama labiríntica como a biblioteca da abadia, Umberto Eco traça um retrato fiel e plausível do dia a dia em uma sociedade religiosa do século XIV. Utilizando seus profundos conhecimentos como medievalista, o autor vai contando detalhadamente as ações malignas e motivações do assassino ao mesmo tempo que assinala os processos dedutivos do detetive Guilherme de Baskerville e seu fiel aprendiz.



           A leitura não é simples. O Nome da Rosa não é fácil. Nem ao menos é confortável. Trata-se de uma obra que precisa ser lida com cuidado e com dedicação, com vagar e esmero. Eco simplesmente deixou intraduzidas todas as passagens em latim. E há dezenas de passagens em latim ao longo do texto. Em entrevistas, costuma dizer que “Se a missa católica foi rezada em latim durante séculos sem que ninguém entendesse nada, então por que motivo eu tenho que explicar o que está escrito ali?” A descrição de paisagens, pessoas e contexto histórico das primeiras cem páginas são exaustivas. Eco diz que “Assim como um noviço, meus leitores precisam passar por uma iniciação para que possam entender o que vem mais tarde e também para que possam se acostumar com o ritmo da obra.” Verdade seja dita, Eco não escreve para os apressados e muito menos para os superficiais.

         Finda a leitura, experimentamos o alívio mesclado com o sofrimento do fim da epopeia de sete dias nos alpes italianos. Os personagens cativantes dão seus adeuses e seguem suas jornadas. Fica na boca o sabor agri-doce do final feliz que não é feliz e do mistério solucionado tarde demais. Fica no peito uma dor que não dói, uma tristeza gostosa e uma lembrança que nem ao menos é nossa.

            Umberto Eco já era professor universitário e autor de vários livros de semiótica, sua área de especialização. Como diz Dante, “já passara da metade do caminho da nossa vida” e já estava casado. Bem humorado, disse que “Naquela idade só se pode fazer duas coisas para espantar o tédio da vida: arranjar uma menina nova e fugir de casa ou escrever um livro. Minha esposa preferiu a segunda opção.” Até aquele momento, quando decidiu expor suas idéias por escrito, onze anos de pesquisas haviam se passado. Daí em diante foram dois anos de escrita. Eco esperou o momento certo para começar sua carreira como escritor e a oportunidade exata para publicar suas idéias.


            Grazie, Umberto.


Ricardo M., 10/09/2015 (lido em português e italiano)

quinta-feira, 9 de julho de 2015

Neve de Primavera - Yukio Mishima

Neve de Primavera: pintando contrastes

Em 25 de novembro de 1970, o Japão foi surpreendido pela morte de um de seus maiores ícones literários do pós-guerra, o escritor Yukio Mishima. Aos 45 anos de idade, Mishima cometeu seppuku (suicídio ritual) logo após a tentativa frustrada de incitar um golpe de Estado que teria por objetivo restaurar o poder ao imperador e impor a lei marcial. Segundo Mishima, esse seria o primeiro passo para reverter a trajetória de decadência moral e política do Japão desmilitarizado e ocidentalizado de pós-1945. O suicídio transformado em espetáculo público, a polêmica das motivações políticas de extrema direita do autor, bem como o caráter ritualístico de sua morte, estariam fadados a alimentar o mito em torno do nome de Mishima e a tornar-se motivo de elucubração da crítica por anos a vir. O fim que o escritor escolhera para a própria vida causou tamanha repercussão, que acabou por ofuscar a publicação do último romance a concluir sua ambiciosa obra prima, o panorama do Japão do século XX: O Mar da Fertilidade (1969-1971).




Mishima vinha trabalhando na obra desde 1964 e, até a data de sua morte, havia publicado já três romances, restando-lhe apenas a conclusão do último livro para encerrar o círculo. Mishima já havia inferido que poderia morrer depois que terminasse O Mar da Fertilidade, visto que não acreditava poder escrever nada superior; porém ninguém imaginaria que ele seguiria suas palavras à risca. Poucos meses antes de suicidar-se em novembro de 1970, Mishima terminara o manuscrito do obscuro romance A Queda do Anjo (1971), que viria a ser publicado no ano seguinte, encerrando assim a tetralogia.

Neve de Primavera (1969) é o primeiro romance da saga, publicado primeiramente em folhetim, entre os anos de 1965-67, e em forma de livro, em 1969. A obra narra a trágica história de amor entre Kiyoaki Matsugae e Satoko Ayakura e, paralelamente, explora os conflitos sócio-culturais do Japão em decorrência da onda de ocidentalização no início do século XX.

A ação se passa durante os primeiros anos do Período Taishô (1912-1926), época marcada pela decadência da antiga aristocracia e a ascenção dos partidos democráticos. Numa tarde de outubro de 1912, Kiyoaki Matsugae e seu amigo, Shigekuni Honda, conversam à beira de um riacho na suntuosa propriedade dos Matsugae, quando presenciam a chegada da hóspede Satoko Ayakura, a belíssima filha de uma família da alta aristocracia, acompanhada de sua tia-avó, a Abadessa do mosteiro de Gesshu.

Kiyoaki e Satoko, apesar de se conhecerem desde tenra infância, vivem numa relação de pretensa indiferença. Kiyoaki sabe do amor que ela lhe devota, porém ignora suas tímidas tentativas de aproximação e sente certo prazer narcisístico em menosprezar-lhe os sentimentos. Somente ao receber notícias do noivado entre Satoko e o príncipe Harunori e vislumbrar pela primeira vez a possibilidade real de perdê-la para sempre, Kiyoaki por fim toma consciência de seu amor por Satoko e decide lutar para reconquistá-la. Em segredo, os dois iniciam uma relação ilícita ao longo da qual hão de vivenciar o desabrochar ardoroso da paixão, porém também assistir às flores de seu sonhos morrer sob o jugo das convenções e normas sociais da época.




O caráter trágico que permeia Neve de Primavera é notório. A triste história de amor de Mishima - as tribulações de dois jovens apaixonados que lutam para ficar juntos, a despeito de todas as dificuldades - faz-nos lembrar eventualmente de Shakespeare. No entanto, ao contrário de Romeu e Julieta, no qual o ódio entre as duas famílias é o único fator a barrar o amor dos protagonistas, as causas para a tragédia em Neve de Primavera  parecem ser mais profundas. No início do romance, não só as duas famílias são a favor da união de Kiyoaki e Satoko, como inclusive encorajam a aproximação dos dois. A bem da verdade, a família de Satoko acabou por noivá-la com o príncipe Harunori tão-somente pelo fato de Kiyoaki nunca ter tomado a iniciativa em pedir a sua mão e por mostrar indiferença à possibilidade de ela casar-se com outro. Ao contrário da obra Shakespeariana, os próprios protagonistas parecem, inadvertidamente, impor barreiras à própria perspectiva de felicidade.

Da mesma forma, diversas situações de conflito entre os dois também se dão pelo fato de Kiyoaki e Satoko possuírem diferenças irreconciliáveis, que contribuem em boa parte para a tragicidade de sua história: Satoko é honesta quanto a seus sentimentos e tenta demonstrá-los, apesar de sua timidez; Kiyoaki dissimula os próprios sentimentos e age de maneira a encobri-los; Satoko é magnânima e paciente; Kiyoaki é caprichoso e intempestivo; Satoko acata, submissa, a decisão da família de casá-la com um homem a quem mal conhece; Kiyoaki rebela-se contra o pai, quando este o proíbe de interferir no noivado de Satoko; quando Satoko toma passos para se aproximar de Kiyoaki, este age de maneira a afastá-la; quando Kiyoaki tenta insistentemente encontrar-se com Satoko, ela lhe barra o caminho atrás de uma muralha de silêncio. Um parece ser o exato oposto do outro e, não obstante suas diferenças, ambos perseveram em sua tentativa inglória de ficar juntos.

A insistência de Mishima em aproximar duas personalidades opostas apenas para se deparar com a aparente impossibilidade de conciliação, não se dá ao acaso. A noção de conflito é pivotal no romance e reflete-se não só no relacionamento conturbado de Kiyoaki e Satoko, como também na relação ambivalente, na época, entre o Japão e o Ocidente. A fim de manter-se como uma potência econômica relevante no cenário mundial, o Japão se viu obrigado a render-se à tecnologia ocidental. Tal avanço tecnológico, no entanto, veio com um preço: ao abrir as portas ao Ocidente, o Japão também entrou inevitavelmente em contato com a cultura ocidental, o que resultou em mudanças na comida, indumentária, nos costumes e, em última instância, na cultura do país. Durante boa parte do século XX, o país lutou com as implicações sociais, políticas e culturais que daí advieram.




Como outros pensadores do século XX, Mishima preocupava-se com a situação da nação e ponderava sobre as conseqüências e o impacto que uma ocidentalização descontrolada teria sobre a identidade e tradição japonesas. Neve de primavera é o cavalete sobre o qual o escritor  escolheu pintar sua visão sobre o dualismo irreconciliável que permeou a sociedade japonesa do último século.

Tal dualismo se reflete, sobretudo, nas personagens que permeiam o romance. À parte das personalidades conflitantes de Kiyoaki e Satoko referidas acima, outras personagens nos dão mostras de viver divididos entre leste e oeste. O exemplo mais claro desse dualismo é o Marquês Matsugae, pai de Kiyoaki. Apesar de descender de uma antiga e estóica família de linhagem samuraica, o marquês fizera fortuna recentemente e adotara por completo o estilo de vida ocidental: veste-se sempre à moda européia, é conhecedor de vinhos e faz questão de que todas as refeições em sua casa sigam os modelos europeus de etiqueta. Todavia, a mansão principal de sua propriedade - na qual mora, sozinha, a avó de Kiyoaki com uma criada - é de estilo japonês. O marquês poderia tê-la reformado para seguir os padrões ocidentais; contudo, por reverência à tradição e respeito a sua mãe, Matsugae optou por manter a antiga casa e construir uma segunda casa no estilo ocidental, na qual mora com a família e o resto da criadagem. Da mesma forma, o enorme jardim que circunda a propriedade, apesar de ostensivamente ocidental, já foi palco de diversas representações do teatro japonês, bem como de uma apresentação de sumô por ocasião da visita do Imperador Meiji à casa dos Matsugae. O marquês orgulha-se por ser um dos poucos a ter recebido a família imperial em sua casa e ter-lhes oferecido uma recepção tradicional à altura. Percebe-se, portanto, que, a despeito de sua presumida "ocidentalização", o marquês mantém não só uma casa japonesa, como também valores genuinamente japoneses: é como se ele fosse ocidental por fora, porém tipicamente japonês por dentro.

Exemplo inverso de tal dualismo temos na casa de Shigekuni Honda, amigo de Kiyoaki. O austero juiz Honda e sua diligente esposa mantêm sua casa em tradicional estilo japonês, no que diz respeito a indumentária, refeições e, de maneira geral, móveis e decoração; no entanto o dia-a-dia da casa é de todo ocidental. O pai de Honda, quando jovem, passara alguns anos estudando Direito na Alemanha e compartilha da predileção alemã pela lógica e a ordem. Por conseguinte, mantém sua casa num regime de severidade e retidão, onde tudo tem de estar na mais perfeita ordem: todos os objetos da casa não só têm uma função, como atendem a um específico padrão de excelência. O mesmo se espera da criadagem: boatos, fofocas e quaisquer demonstrações de frivolidade são silenciados por um mero olhar do juiz. Ao contrário dos Matsugae, a aparência na casa de Honda é japonesa, enquanto o "interior" é notadamente ocidental.

Tal qual a neve tardia que se mistura com as flores a desabrochar na nova estação, Yukio Mishima nos oferece uma obra que logra unir o cavalete  narrativo do realismo inglês com as cores do lirismo japonês. O resultado é uma magnífica pintura de contrastes, que nos impressiona por sua observação histórica e nos desola com sua trágica história de amor. Finda a leitura, a sensação que nos fica é a de um estranho misto de enlevo e tristeza. Assim como o amor de Kiyoaki e Satoko, Neve de Primavera possui aquela espécie de beleza trágica, tão típica em Yukio Mishima -- a beleza de uma flor de cerejeira, que, cheia de cor, enleva-nos o espírito, enquanto despetala-se, devagar, diante de nossos olhos.

Filipe Kepler, 07/07/2015 (lido em inglês)