Quando o escritor norte-americano
William Faulkner publicou seu quarto romance, "O Som e a Fúria", em
1929, a recepção da obra não foi o que se pode chamar de "um sucesso de
vendas". Somente em 1931, com a publicação de "Santuário" - obra
com enredo polêmico e um tanto sensacionalista que o autor alega ter escrito
apenas por dinheiro - foi que Faulkner ganhou notoriedade e, consequentemente,
atraiu o interesse do público e da crítica para seu esquecido, e magnífico,
romance de dois anos atrás. Desde então, o êxito de "O Som e a Fúria"
tornou-se indiscutível, chegando ao patamar de ser considerado, com
unanimidade, um dos melhores romances de língua inglesa do século XX.
O romance narra a história dos
Compson, antiga família pertencente à aristocracia rural da cidade de
Jefferson, no Mississipi. Abrangendo um período de aproximadamente trinta anos,
a obra nos descreve a trajetória de decadência e ruína que levou à quase total
dissolução da família e, inclusive, à morte de alguns de seus membros.
Seguindo nos moldes dos romances experimentalistas
de escritores do início do século XX como Virgínia Woolf e James Joyce,
Faulkner faz uso de diversos recursos narrativos, tais como fluxo de
consciência, simbologia, alternância de narradores, sinestesia e
não-linearidade narrativa, a fim de nos transmitir a saga dos Compson não pelos
fatos, mas sim pelas emoções transmitidas pelos personagens. Como já induz o
título Shakespeariano, "O Som e a Fúria" não se trata de um romance
bucólico que se passa no Sul dos Estados
Unidos no início do século XX; mas sim de um tour de force desenfreado de eventos, sons, imagens e paixões cuja
fúria consume e, por fim, destrói toda
uma família. Faulkner faz uso de recursos narrativos não convencionais a fim de
enfatizar, e mesmo exacerbar, o aspecto humano da tragédia, em detrimento da
sucessão lógica dos acontecimentos. Pois, os acontecimentos em si não têm importância;
importante são antes os efeitos e reverberações que eles produzem nos
personagens e, consequentemente, nas tempestades que estes últimos vêm a
desencadear.
Atentando para a estrutura do
romance, verifica-se que este se divide em quatro grandes capítulos,
que se passam em diferentes dias e são narrados, exceto pelo último, por cada
um dos representantes da última geração dos Compson: Benjamin (em 7 de Abril de
1928), Quentin (em 2 de Junho de 1920) e Jason (em 6 de Abril de 1928). O
último capítulo é narrado por um narrador onisciente (em 8 de Abril de 1928) e
descreve os eventos posteriores àqueles narrados no primeiro capítulo.
Contudo, é digno de nota atentar
para o fato de que, a despeito dos títulos, cada capítulo em verdade ultrapassa
o escopo temporal de um dia. Pensamentos, recordações, diálogos ou mesmo
impressões do narrador se interligam aos eventos do presente, de modo que, em
vez dos acontecimentos de um dia único dia, deparamo-nos antes com eventos,
imagens ou até sons de diferentes períodos no tempo. Tais "saltos"
temporais e contextuais são, por vezes, marcados por grifos em itálico ou
separados por parágrafos. Porém, podem também surgir sem nenhuma marca formal,
no meio de um diálogo ou mesmo de uma frase. Não há um padrão fixo em sua representação,
de modo que cabe ao leitor manter-se alerta, a fim de orientar-se ao mergulhar
neste imbricamento textual. Outro fator interessante é o fato de que cada
capítulo possui um narrador-personagem diferente. Portanto, a forma e estilo
narrativos também diferem sensivelmente de um capítulo para o outro, o que
torna a leitura mais diversificada e, por conseguinte, mais desafiadora.
Possivelmente, o exemplo mais
notório desta técnica narrativa tão particular - hoje já indissociável do nome
do autor - se dá na forma do primeiro capítulo do romance, "7 de Abril de
1928". O capítulo é narrado por Benjamin (referido geralmente apenas por
"Benjy"), quarto filho do casal Compson e que sofre de algum tipo de
doença mental não especificada no romance. Uma vez que Benjamin é incapaz de pensar de
maneira lógica, ele apreende a realidade não pelo raciocínio, mas pelos
sentidos. Cheiros, sons e cores despertam diferentes associações e lembranças em
sua mente, de modo que a narrativa se mostra altamente sinestésica e permeada
de digressões.
Nesta maneira revolucionária de abordar o
aspecto narrativo é que jaz um dos aspectos mais impressionantes do romance: Faulkner
logra reconstruir e descrever o pensamento através da linguagem. Através da
narrativa de Benjamin - bem como da dos outros personagens - somos capazes de
entender como sua mente funciona e ver o mundo por seus olhos. É-nos revelado a
maneira única como Benjamin percebe seus familiares e como ele atribui
sentido aos eventos que se descortinam ao seu redor.
Apesar de tratar-se de uma obra hoje canônica, não é difícil imaginar - mesmo para mim, apreciador convicto e imoderado de Faulkner - que "O Som e a Fúria" possa ter sido menosprezado no início. Os motivos de seu inicial fracasso comercial são de tal modo evidentes para qualquer pessoa com um mínimo de conhecimento do universo faulkneriano, que me abstenho de perder linhas a enumerá-los. Suponho que o dissabor que muitos tiveram com a inacessibilidade de seu grande romance se deva ao fato de não entenderem que Faulkner é um escritor fiel à sua visão; que não tem o mínimo interesse em ajudar o leitor; que não tem paciência de segurá-lo pela mão e oferecer-lhe coordenadas, a fim de que este encontre facilmente o sentido e a saída de seus labirintos literários. Não há atalhos em Faulkner. Sua obra nos frustra, confunde e, em última instância, castiga. Sim, Faulkner nos pune por conta da noção superficial e estreita que temos do que venha a ser o ato de ler. Por conta disso, ele figura como um dos grandes escritores cujos romances nos obrigam a amadurecer e educarmo-nos como leitores, a fim de que possamos desfrutar plenamente da inesquecível experiência artística que eles nos oferecem. E no caso de "O Som e a Fúria", a recompensa absolutamente faz jus aos trabalhos do caminho.
Filipe Kepler 13/01/2015 (lido em português e inglês)
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