domingo, 31 de julho de 2016

A solidão dos números primos - Paolo Giordano


日本語

Ultrapassando a solidão

            O título assusta um pouco: números primos. Causa um certo desconforto se imaginar lendo um romance que tem como pano de fundo a matemática – ainda que existam, sim, muitos romances muito bons com as ciências como pano de fundo – mas, não. Trata-se na realidade de um romance sobre dois jovens que são extremamente incapazes de terem vidas normais. No entanto, uma vez que apenas um romance romântico não funcionaria para criar uma história satisfatória, o autor – na época, mestrando em física – decidiu nos apresentar ali nas páginas de seu livro um pouco de seu mundo.


            “Matemática e amor. Certo, vamos enfrentar este livro.” Foi assim que tomei nas mãos este livro e, bastou abri-lo e ler as primeiras linhas para que a fluidez do texto e a beleza das frases se fizessem sentir. O desenrolar dos acontecimentos nos prende, Paolo Giordano sabe como conduzir uma narrativa de maneira que mesmo eventos banais pareçam envolventes.
            Fica a pergunta: o que é solidão? Pois ela não é apenas causada pela ausência de alguém a nossa volta. E é isto que este livro vem nos provar.
            Mattia e Alice não estão sozinhos. Ambos nasceram e foram criados em famílias abastadas do norte da Itália (os eventos se passam, em boa parte, em Turim), e são bastante amados por seus pais. Desde muito jovem Mattia já demonstra uma habilidade incomum para os números. Alice é uma menina com muita energia e uma imaginação bastante fértil.
            Então porque estes dois amigos unidos pelo destino simbolizam aqui a solidão?
            Temos todos, arrisco dizer, feridas antigas e complexos plantados no passado e que carregamos conosco, por vezes, até nossos últimos dias. Entretanto, a maioria de nós aprende a lidar com esses problemas, esquecendo-os ou apenas ignorando-os, como se nunca houvesse acontecido nada.
            Ainda bem jovens, os dois se depararam com tragédias em suas próprias vidas. Além disso, ambos fizeram por conta própria as escolhas que levaram a estas tragédias e ambos sabem muito bem disso. É a consciência de que suas escolhas ocasionaram seu sofrimento que torna a dor mais forte.
           Números primos existem muitos. Centenas de milhares, talvez muito mais. Porém, um número primo nunca se encontra ao lado de outro. Vez que outra podemos averiguar a existência de um número primo bem próximo de outro, o que é chamado de número primo gêmeo. Estão sempre perto um do outro, estes números primos gêmeos, sem que jamais se encontrem, pois entre eles sempre haverá um número par. Sempre haverá algo, uma barreira, entre os dois. É possível que os dois números primos gêmeos desta história, Mattia e Alice, estejam mantendo um equilíbrio perigoso, um malabarismo entre si que põe suas próprias vidas em risco de se tornarem sem sentido. Estes dois personagens que são ambos principais e que têm seus corações dilacerados por dentro e corpos feridos por fora.


            Tanto Mattia quanto Alice enfrentaram acontecimentos trágicos em suas infâncias. Ambos momentos foram diferentes entre si, porém com consequências marcantes para eles. A tragédia de Mattia feriu seu “coração”. Ele, para conseguir tornar visível o que nem ao menos ele pode ver, registra no próprio corpo o seu tormento. No caso dele, a tragédia interna da infância é mostrada no exterior por ele mesmo, uma conexão entre corpo e espírito. No caso de Alice, entretanto, é um pouco mais complicado. Ela sofreu com seu corpo um acontecimento trágico irreparável, o que já seria suficiente para magoar seu coração. Acontece que ela usa essa amargura em seu peito para ferir seu corpo de outra maneira.
Estes dois personagens feridos são importantes entre si pois são os únicos que compreendem entre si e sem palavras o que o outro pode estar passando. E mesmo assim, não são capazes de ser felizes juntos, pois estão sobrecarregados com o simples fato de existir. É um livro recheado de dor, sofrimento e solidão.
            “Acho que devia mudar” passando para “Preciso mudar já” e que acaba no “Não consigo mudar, por mais que tente.” Acredito que todos nós já passamos por um momento de conflito, mais ou menos intenso, desta espécie. Mesmo a pessoa mais branda tem seu lado duro e imutável como um número primo. No entanto, no caso de Mattia e Alice, o estágio “Preciso mudar já” extrapolou as categorias conhecidas. Talvez seja este o mesmo motivo pelo qual não precisam mudar mais.
            A vida é repleta de perguntas e cheia de respostas. Porém não são as respostas dadas que nos ajudam a viver. São as escolhas que fazemos e que não temos outra escolha além de seguir que fazem de nós o que somos.
            O livro não satisfaz o leitor com seu final. Sejamos sinceros.
         Este livro está escrito com um estilo muito próprio, no qual uma miríade de fios simbolizando atos dos personagens acabam por guiar o leitor ao que ele espera que possa estar além das últimas páginas do livro.

Ricardo M. 28/Julho/2016 (lido em inglês)


quarta-feira, 1 de junho de 2016

A Guerra do Fim do Mundo – Mario Vargas Llosa

Os Sertões de Vargas Llosa

Após ler Os Sertões de Euclides da Cunha, o grande escritor peruano Mário Vargas Llosa ficou de tal maneira impressionado, que acabou por embrenhar-se, ele mesmo, pelas veredas do sertão brasileiro. Fruto das infinitas horas de pesquisa em bibliotecas e, inclusive, de viagens ao Brasil para ver Canudos de perto, eis que nasce A Guerra do Fim do Mundo.



Mal pude acreditar ao descobrir que uma obra que se impõe com tamanha audácia pudesse contar trinta anos. Sua relevância é absoluta e serve apenas para atestar a maestria da mão que a trouxe à luz.

Dialogando constantemente com a obra canônica de Euclides da Cunha, A Guerra do Fim do Mundo aborda o mais sangrento conflito político da história do Brasil a partir de uma perspectiva literária. E o resultado não poderia ser outro: o livro nos desnuda o caos, a violência, a miséria e, acima de tudo, a ignorância - dos sertanejos, dos militares, dos políticos, dos intelectuais, de todos os brasileiros em entender o que foi Canudos. 

Finda a leitura, não sei o que me impressiona mais: se o realismo das batalhas, que se desenrolam numa sofreguidão e dinamismo cinematográficos; se a vivacidade e cor com que Llosa delineia seus personagens, tão memoráveis e assustadoramente brasileiros; se a narrativa multifacetada, sinuosa, que ora nos conduz pela senda política, ora nos abandona no sertão, em companhia dos obstinados e inescrutáveis sertanejos, para em seguida resgatar-nos e levar-nos de volta ao ponto de partida e destino final: à terra santa, mística, espartana de Antônio Conselheiro e seus apóstolos. 




Talvez o que de fato mais me impressionou tenha sido a sagacidade do autor ao apresentar-nos um Euclides míope, frágil, excêntrico. O jornalista aspirante que se lançou a Canudos com o nobre intuito de oferecer um relato apurado acerca do fenômeno que tanto atemorizava todo o país é incapaz de compreender o que viu. Apesar de ter estado lá, na guerra, na poeira, no sangue, o Euclides de Llosa é incapaz de explicar Canudos. Quebraram-se-lhe os óculos a meio caminho e, cego, ele passa a tatear na escuridão o desenrolar da guerra, tentando tão-somente sobreviver, a fim de poder contar não o que viu, mas o que ouviu, sentiu, sofreu. Pois ao ler A Guerra do Fim do Mundo, pude eu também sentir no rosto o calor das chamas que engolfaram o sertão baiano e clamaram tantas vidas. E tal qual o jornalista míope, ao fim da jornada, também eu não tenho palavras para contar o que vi. A guerra em Canudos retém, ainda hoje, aquele ar dúbio de mito - foi absurda demais para ser verdade, e por demais absurda para não o ser.         

Filipe Kepler 03/Fev/2016 (lido em português)                                                                                 

domingo, 1 de maio de 2016

Os da Minha Rua - Ondjaki

Aurora de nossas vidas

            Infância é essa curta parte inicial de nossas vidas onde tudo que é importante se define e se desenvolve. É a primeira etapa desta corrida contra o tempo a que chamamos vida, a base, o alicerce do que fomos, do que somos. Nada mais natural do que sentir saudades desse tempo, alimentar nostalgias e idealizar o passado de que fizemos parte ou que fez parte de nós mesmos.



            Os da minha rua, do escritor angolano Ondjaki é o que se pode chamar de coletânea de contos, aparentemente organizados sem ordem cronológica, que vão contar acontecimentos de sua infância em fins dos anos 80 e início dos 90. A composição do livro é de 22 textos curtos que podem ser lidos de forma independente, como contos, ou como capítulos. O menino Ndalu (nome real do escritor Ondjaki), às vezes chamado de Dalinho, é o protagonista que narra suas aventuras em Luanda, a capital Angolana. Tudo aqui é contado pela perspectiva de uma criança: encontros com amigos, brincadeiras, o dia a dia na escola, personalidade de parentes, conversas com os pais.

Eu tenho saudades da infância. Acho que é natural. Todas as pessoas, em dada altura da sua vida, tem saudades da infância.
Ondjaki, em entrevista.

Os da minha rua é um livro que pode bem ser chamado de hino à infância, à todas as crianças, aos risos, aos jogos e brincadeiras, aos primeiros amores e  à constante descoberta de um mundo vasto, quase infinito. É uma ode à amizade, à família, à natureza, à memória. Na voz de Ndalu, Ondjaki nos relembra de um universo infantil que parece estar se afastando de nós a cada dia. Sua infância, de seus amigos e de primos, foi uma época em que brincavam na rua, subiam em árvores para colher frutas, participavam de desfiles escolares, reuniam-se ao redor dos mais velhos para ouvir suas histórias.

Ondjaki, Neste livro curto, feito de pequenas histórias, Ondjaki, consegue inserir todas essas informações e adicionar uma mancheia de poesia com uma escrita divertida e emocionante, que nos transporta para a recordação de nossa infância, para a inocência dos tempos em que a vida era simples e os risos bem mais fáceis. 

A vida às vezes é como um jogo brincado na rua: estamos no último minuto de uma brincadeira bem quente e não sabemos que a qualquer momento pode chegar um mais velho a avisar que a brincadeira já acabou e está na hora de jantar”.

Mas certamente a narrativa dá a entender que nem tudo era um mar de rosas para as crianças de Luanda. Misturando memórias com acontecimentos históricos, Ndalu vai compondo o quadro social de seu país: explorado à exaustão por Portugal para então se libertar e cair numa guerra civil de proporções colossais. O livro também é um convite para conhecer uma obra originalmente escrita em português vinda de um país lusófono que não seja o Brasil ou Portugal, bem como despertar o interesse pela história de Angola.



            Vale a pena também comprovar a presença brasileira em Angola através de novelas e da música. Boa parte do livro tem comentários sobre novelas brasileiras, como O Bem-Amado e Roque Santeiro. Outro de nossos heróis também era muito apreciado por aquelas bandas: Roberto Carlos, cujas músicas eram bastante conhecidas do publico angolano.

Para os que ainda não se aventuraram pelos livros de escritores africanos e lusófonos: vocês ainda não sabem o que estão perdendo. A forma com que se utilizam da língua que usamos diariamente aqui aparece lá de formas mais musicais e mais doces, quase uma língua nova, vivaz e alegre. A narrativa usa uma linguagem simples, repleta de oralidade e frases curtas. Foi bastante divertido descobrir palavras e expressões desconhecidas no Brasil e em Portugal (o livro conta com um glossário nas últimas páginas). Creio que podemos dizer-nos privilegiados por podermos compreender aqui o que dizem por lá, do outro lado do atlântico e, se por vezes alguma palavra nunca antes vista ou expressão desconhecida surge, assim, como quem não quer nada no texto, isso só aumenta o prazer e amplia o interesse na leitura.


Ricardo M. 01/Maio/2016