terça-feira, 1 de março de 2016

Jesus Cristo Bebia Cerveja - Afonso Cruz

Jerusalém está em todo o lugar

            Jesus Cristo bebia cerveja. Não dá pra dizer que não se trata de um título interessante e curioso. JC ia em bares romano-israelitas tomar um traguinho com os apóstolos? O untado entornava bem uma loira gelada? Como assim?



            Depois de algumas semanas afundado até o pescoço em autores de língua inglesa (não que isso seja necessariamente ruim), achei que era mais do que a hora em que eu deveria voltar a ler romances escritos na única língua que conta. A minha. A nossa.

            Jesus Cristo bebia cerveja conta a história de Rosa, uma moça que mora com a velha avó quase surda numa vila do Alentejo, em Portugal. Rosa foi abandonada pela mãe ainda criança e viu o pai morto, depois deste ter se suicidado. Amparadas apenas pela pequena horta que têm e pelas pensões que recebem, as duas vivem uma vida de difíceis condições. Rosa é uma moça tristonha e sonhadora. Vive relembrando os pais que já se foram e lendo repetidas vezes os mesmos romances de caubóis e alguns romances policiais, decorando trechos e recordando personagens.

            Algum tempo depois, Rosa passa a viver e trabalhar na casa de um senhor rico da cidade e deixa a avó aos cuidados de uma vizinha. Entretanto, a situação não é boa nem para Rosa nem pra sua avó Antônia, que já não enxerga direito e tem frequentes lapsos de memória. A avó sonha em conhecer a Terra Santa, Jerusalém, mas Rosa sabe que não há a menor possibilidade disso acontecer.

Rosa então conhece o professor Borja, um douto homem de ciências, que resolve ajudar Rosa a realizar o sonho da avó. O professor teve um casamento terrivelmente malfadado e agora está apaixonado por Rosa, apesar de já ser um homem com mais de setenta anos de idade.

Quando o professor vê no rosto de Rosa sua tristeza por não poder levar a avó à Jerusalém, o professor se compadece e elabora um plano: remodelar a aldeia pertencente a uma rica senhora inglesa de modo a fazer com que Antônia pense que está realmente na terra santa.




Jesus Cristo bebia cerveja conta histórias de amor e muita solidão. Mais solidão do que amor, pois sentimentos bonitos e tudo o que leva à felicidade dura tanto quando um fugaz momento. A solidão, a tristeza, a morte: isso é o que dura, que nos acompanha, que penetra em nossos corpos e faz de nós o que somos. Sentimentos que falam do que é, do que foi e do que será. Que explicam a essência de tudo que existe e nos fazem refletir sobre o que somos e para onde vamos.

“Cada vez que deixamos de ser percebidos, morremos. Quando somos enterrados deixamos de ser percebidos por toda a gente, mas quando os outros já não olham para nós, ficamos condenados para um número limitado de pessoas, a uma morte a tudo idêntica à outra. Nossa morte não acontece quando somos enterrados, acontece continuamente: os dentes caem, os joelhos solidificam, a pele engelha-se, os amigos partem. Tudo isso é morte. O momento final é apenas isso, um momento.”

A leitura do livro é deliciosíssima. Os capítulos são curtos e concisos, apresentando em poucas frases tudo que é necessário ou importante saber. Os personagens são cativantes e dotados de idiossincrasias fascinantes. Afonso Cruz destila o melhor da linguagem para oferecer-nos situações únicas e disparates  que se encaixam tão bem na narrativa que, durante a leitura,  nem ao menos sentimos muita estranheza. O bom humor com que a história é contada é contagiante, mas não deixa de emocionar. Um humor que sobe e desce como as marés acompanha a leitura de cabo a rabo, bem como uma fina ironia e uma pungente melancolia, que vai engrossando e ficando cada vez mais viscosa a cada página, até que o final surpreendente se gruda como cola em nós e já não há mais como escapar. Contudo, a leitura não se torna triste ou desagradável. Apenas reflete, com muito bom humor, um pouco da melancolia de que somos feitos.


Ricardo M. 2016/03/01 (lido em português)

2 comentários:

  1. Que título mais interessante! Só por ele já fiquei muito curioso, mas sua resenha aumentou essa curiosidade. Não apenas por aparentar ser um livro muito bonito, mas acho que principalmente pela qualidade que você ressalta em suas palavras. Tem tudo para me agradar.

    Abraços,
    Ricardo - www.overshockblog.com.br

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  2. É isso mesmo, Ricardo. Trata-se de um livro que vai desenrolando uma história engraçada que poderia ter um final clichê com todo mundo feliz no final, mas que só surpreende a cada página.
    Tem tudo mesmo para agradar leitores da boa literatura.

    Abraço,
    Ricardo M.

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